O Porto da Estrella, a dona do sobrado, o dono do rancho e as recepções de Dom Pedro I - em Magé - RJ
Por Hugo Delphim Borges
O Porto da Estrella é sem dúvida um dos sítios históricos mais importantes do Rio de Janeiro. Nele se iniciava o Caminho do Proença, que ligava o fundo do Baía de Guanabara as Minas Gerais e por onde se escoava o ouro dessa região. O caminho recebeu esse nome por ter sido aberto pelo sargento-mor Bernardo Soares de Proença entre 1722 e 1725 e também foi chamado Estrada da Estrella ou Caminho Novo. As embarcações que saíam do antigo Cais dos Mineiros, atual Praça Quinze, navegavam pela baía e adentravam pelo Rio Estrella, ancorando no porto.
Devido a sua importância, o Porto da Estrella foi retratado e relatado por diversos viajantes estrangeiros que por lá passaram. A Estrada da Estrela também. Algumas dessas obras estão nas imagens em anexo. Os relatos são em sua maioria das primeiras décadas do século XIX e falam de um local com grande movimento de barcos, tropeiros e mercadorias. A vila tinha vida pujante e comércio intenso. Contudo, no que tange a sua esrutura, muitos desses viajantes descrevem como um modesto arraial, com poucas edificações, baseados na visão do europeu habituado com as metrópoles.
O objetivo deste artigo é trazer a tona a verdadeira dimensão da Vila da Estrella, bem como resgatar o nome de importantes personagens que tiveram seus nomes apagados pelo tempo. Através de consulta a fontes primárias, foi possível descobrir que em meados do século XIX o núcleo habitacional da Vila da Estrella era muito mais que um pequeno arraial, sendo composto por centenas de edificações.
Segue trecho de registro de 1856 que testifica este fato:
"Registra mais na mesma Villa, os terrenos que estão edificados os prédios numeros cento e cinco, cento e sete, cento e nove, centro e onze, centro e treze, centro e quinze, centro e dezessete, centro e dezenove, cento e cinquenta e nove, cento e sesenta e hum, centro e sesenta e tres, cento e sesenta e cinco, cento e sesenta e sete, centro e sesenta e nove, sento e setenta e hum..." (Registro Paroquial de Terras da Freguesia de N. S. da Piedade de Inhomirim)
A numeração dos prédios deixa bem claro que havia centenas de edificações no arraial. Em sua grande maioria, essas edificações ficavam as margens do caminho novo, que era a rua principal da vila.
O DONO DO RANCHO DO PORTO DA ESTRELLA:
O trecho anterior faz parte do registro das propriedades do Alferes FRANCISCO ALVES MACHADO, o homem mais rico da Vila de Estrella na primeira metade do século XIX. Ele também foi dono da Fazenda e Olaria do Salgado (em Guia de Pacobaíba), da Fazenda da Tapera (atual Parada Angélica), de uma Chácara na vila e dos terrenos onde se localizava o Porto da Estrella e suas principais edificações, como o rancho que aparece em diversas pinturas. Também era dono de todos os barcos "do meio dia" que partiam do Cais dos Mineiros em direção ao Porto da Estrella.
Sobre esses valiosos terrenos no porto, primeiramente arrendados ao Alferes Francisco Alves Machado, segue trecho de escritura de 1810:
"Escritura de arrendamento de terras que faz Maria Genovena de Macedo, viúva do Alferes Henrique Brandão, ao Alferes Francisco Alves Machado - com casa de sobrado de vivenda, de estalagem e armazém térreos (...) nos quais há também vários foreiros e arrendatários, com capela de invocação de Nossa Senhora da Estrela (...) sitas no porto de Estrela, freguesia de Inhomirim..." (3º Of. de Notas, no Arq. Nacional)
O alferes Henrique Brandão foi um homem muito abastado e deixou altas quantias para a viúva Maria Genoveva de Macedo e seus filhos, que sem preocupação alguma em gerar mais riquezas, arrendou as terras da chamada Fazenda da Estrella ao alferes Francisco Alves Machado. Devido a avançada idade, ela não cuidou do inventário e não deu a partilha aos filhos herdeiros. Ao falecer, o arrendatário Francisco Alves Machado, até então homem de confiança, é nomeado inventariante da mesma, através de procuração dos filhos. Por décadas o invetário se arrastou e os órfãos tiveram seus bens dilapidados. Foi quando surgiu uma ação de uns dos herdeiros contra o alferes. Então, de forma suspeita, um neto de Maria Genoveva de Macedo vende a terça parte que alegava ter recebido de sua avó, apesar da mesma não ter deixado testamento e não ter feito a partilha dos bens de seu falecido marido.
Essa parte das terras era onde estava o porto e as principais edificações da vila. Dessa forma, Francisco Alves Machado, novo proprietário definitivo do trecho, auferia lucro em praticamente todos os negócios locais, seja pelo frete de seus barcos e porto, comissões e no recebimento do foro e arrendamento de vários imóveis, como consta no registro anterior. O período que esteve como arrentadário foi o suficiente para enriquecer e comprar mais terras na vila, como as dos herdeiros do Vigário Laet, dos herdeiros de José Martins de Brito e de Francisco José Gomes. Se tornou dono de praticamente toda a área do porto, exceto os terrenos e imóveis pertencentes a irmandade da capela de N. S. da Estrela, que também recebia pelos arrendamentos, além de uma vizinha que será citara mais adiante.
Por isso foi citado pelo Presidente da Província João Caldas Vianna, como dono dos "...telheiros da Praça de São Honório no Arraial do Porto da Estrela". Essa praça, cujo nome desapareceu com o tempo, foi desapropriada em 1842, se tornando pública. Sobre esse fato, segue registro de 1846:
"Remetto a V. S. os inclusos requerimentos de (...) que pedem terrenos de marinhas no Porto da Estrella em frente do caes, que ali se projecta, afim de que V. S. mande proceder ás diligencias do estilo para que sejão concedidas aos supplicantes as marinhas que pedem. E porque muito convém aos interesses publicos promover a edificação de predios: cumpre que n'essas diligencias tenhas em vista: 1º, dividir as dita marinhas em muitos prasos de 6 braças de frente cada um, a começar d'esde o terreno, que por este governo foi desaproprieado á Francisco Alves Machado pela deliberação de 24 de dezembro de 1842, para ficar sendo praça publica..." (Diário do Rio)
Em contraste com o período que os artistas retrataram o Porto da Estrella, tempo em que barcos ainda atracavam em numa faixa de areia, após a desapropriação foi construído um grande cais de pedra com cerca de 100 braças, que foi dividido em diversos prazos de terra de 6 braças, onde cada suplicante edificou seu negócio. Os telheiros de Francisco Alves Machado, junto a marinha, foram totalmente arrazados. Essa nova característica do porto pode ser observada em uma das imagens em anexo, uma foto do início do século XX, onde se observa a separação entre as edificações. Outra fotografia recente nos mostra que desse grandioso cais só restou alguns degraus de pedra.
Vale ressaltar que mesmo após a desapropriação, o Alferes Francisco Alves Machado continua se utilizando de uma parte do Porto da Estrella, conforme registro de 1852:
"Quem lhe faltar 6 barricas de farinha de trigo que vierão no dia 7 do corrente do porto do Sr. Francisco Alves Machado, da Villa da Estrella, com outras barricas de farinha de trigo que nos pertencião, achão-se em nossa casa por conductor não saber quem era seu dono..." (Jornal do Commercio)
Um registro da Gazeta de Petrópolis de 1892 também cita o alferes e relembra como era a dinâmica da viagem para o Porto da Estrella:
"...tomava-se na Praia dos Mineiros, Rio de Janeiro, assim cognominada até hoje por ser a primeira phase da viagem até Minas, passagem em uma falua ás 11 horas da manhã e aproava-se ao porto da Estrella (...) No porto da Estrella desembarcava-se em qualquer dos ancoradouros de Francisco Alves Machado e do Joviano Varella, ás 5 horas da tarde, quando o tempo favorecia; ahi pernoitava-se em qualquer das casas desses cidadãos que davam franca hospitalidade, ou em estalagem do lugar."
AS RECEPÇÕES DE DOM PEDRO I NA VILA DA ESTRELLA:
Tamanho o seu prestígio e riqueza, o Alferes Francisco Alves Machado, que ressalte foi um dos maiores acionistas do Banco do Brasil, chegou a hospedar por diversas vezes o imperador Dom Pedro I e o Príncipe de Joinville, que foi Francisco d'Orléans, filho do Rei Luís Felipe I da França. Segue notícia de época, sobre seu falecimento, que ao testificar esses fatos, comprova a grandiosidade da extinta Vila da Estrella:
"Falleceu na Villa da Estrella, onde nascêra, o Sr. Francisco Alves Machado, o mais rico negociante e proprietário dalli, com 74 annos de idade pouco mais ou menos (...) O Sr. Francisco Alves era jovial e folgazão, de probidade severa, acolhia a todos em sua casa sem distinçao de classe, e tratava os seus hospedes com a maior galhardia. Elle mesmo contava os começos de sua vida, a constancia de seu trabalho, que de pobre pôde eleva-lo a uma fortuna superior a 1,000:000$. Era cavalleiro de Cristo, e desse habito só usou uma vez. Até 1855 passava quasi todo o tempo na villa no seu estabelecimento commercial. Desse anno em diante retirou-se para a sua fazenda do Salgado, onde quasi sempre residia. (...) Occupou na Villa da Estrella os primeiros logares: foi presidete da camara, juiz de paz e eleitor muitas vezes, substituto do juiz municipal e thesoureiro dos orphãos. Hospedou muitas vezes o Sr. Dom Pedro I e várias pessoas de distinção, entre as quaes o Sr. principe de Joinville. Apezar disso e dos serviços publicos que prestava, nunca pediu honras nem mercês." (Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal)
Para receber o imperador e pessoas de distinção, certamente se tratava de uma casa luxuosa, com muito conforto, ostentando luxo e obras de arte. Um exemplo disso é que nesta residência se encontrava uma raríssima obra do artista Xavier das Conchas, que entre outras, foi autor das obras de arte do Passeio Público, junto com Mestre Valentin e Xavier dos Pássaros. Em 1879, época do relato a seguir, essas obras já haviam se tornado raras e valiosas, como consta no trecho:
"Para realisar o bemfazejo pensamento do vice-rei, foram chamados os dous homens mais engenhosos da época: Valentim e o celebre Xavier das Conchas, assim alcunhado pelos formosos trabalhos que fazia, dos quaes ainda existem muitos em varias casas antigas, entre ellas a do Sr. Francisco Alves Machado, da villa da Estrella, onde ha um bellissimo trabalho d'este artista." (Revista Musical e de Bellas Artes)
Entre os diversos imóveis que possuía na vila, é provável que a casa onde recebia seus ilustres hóspedes se tratava da chamada Chácara, que é citada no trecho a seguir:
"Na Villa as terras denominadas Chácara, que comprei a Francisco José Gomes, que faz testada na rua principal, e divide pelo lado de baixo com terras da fazenda da Estrella, e pelo lado de cima com terras do predio de Dona Anna Luiza Alves de Faria..." (Registro Paroquial de Terras da Freguesia de N. S. da Piedade do Inhomirim)
A PROPRIETÁRIA DO SOBRADO DO PORTO DA ESTRELLA:
A citada Dona ANNA LUIZA ALVES DE FARIA, citada como proprietária do prédio vizinho, foi nada mais nada menos que a dona do lendário sobrado que aparece em todas as antigas imagens do Porto da Estrella!
Foi também foi proprietaria da Fazenda do Mato Grosso (proximidades do Depósito das Casas Bahia), vizinha a Fazenda de São Paulo (atual Museu Duque de Caxias), esta que em meados do século XIX era propriedade de sua filha homônima, Anna Luiza Alves de Faria Filha, sendo também o local de nascimento de Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Sua filha faleceu de "cancro axiliar", com apenas 39 anos, em 1863.
Segue um precioso anúncio de 1838, onde cita o negócio de Anna Luiza Alves de Faria no Porto da Estrella:
"Vendem-se os generos, armações e seus utensílios de duas casas de negocio, huma de fazendas seccas e outra de molhados, sita no Porto da Estrella muito perto do embarque e desembarque, bem afreguezadas, que forão do fallecido José de Faria Ferreira, e hoje de sua viuva Anna Luiza Alves de Faria. Quem as pretender póde dirigir-se áquelle Porto para as ver e examinar..." (Jornal do Commercio)
Segue também um aviso de 1837, após se tornar viúva:
"Anna Luiza Alves de Faria, viuva de José de Faria Ferreira, assitente no Porto da Estrella, faz saber a todos os Srs. credores do falescido seu marido, que ella vai proceder a Inventario pelo Juiso dos Orfãos da Villa de Magé, e que se faz preciso que os mesmos Srs. credores tratem o quanto antes de legalisarem as suas dividas..." (Diário do Rio de Janeiro)
Segue outro anúncio, de 1847, que também cita a personagem:
"No dia 21 de fevereiro proximo passado fugio, de casa de D. Anna Luiza Alves de Faria, residente na villa da Estrella, Julieta, Mina, Africana livre, tendo posto fora toda a sua roupa, e consta que no mesmo dia embarcara para esta côrte. É de estatura regular, reforçada, tem muitos signaes de bexiga, fula, tem bons dentes e um signal de fistula no pescoço; quem apprehender leve-a à casa do curador..." (Jornal do Commercio)
Não podemos deixar de frisar, através desse registro, o quão cruel foi o período da escravidão. É muito comum encontrar registros que mencionam escravos com diversos problemas físicos, cicatrizes e até mutilação.
Na famosa gravura de Rugendas que se encontra em anexo, onde também aparece o sobrado do Porto da Estrella, podemos notar a figura de uma mulher na janela do edifício. Seria a sofrida escrava Julieta ou sua senhora Anna Luiza Alves de Faria?
A resposta para essa pergunta e mais detalhes dessa história se encontram na descrição das imagens. São detalhes e vestígios de diversas edificações que existiram na região.
Sobre a Vila da Estrella e seu porto, entraram em decadência após o deslocamento do eixo econômico provocado pela construção das ferrovias. O declínio no uso das estradas e do transporte fluvial ocasionou o colapso econômico em diversas regiões que tinham nesses meios de transporte a razão de sua existência.
*Pesquisa, fotos e texto autoral de Hugo Delphim Borges, publicados na Página O belo e histórico Rio de Janeiro.