A família Werneck no contexto da criação de Miguel Pereira
10/03/2021 - Vale do Café
Por Sebastião Deister
A família Werneck originou-se de uma secular estirpe europeia cujos nomes já eram conhecidos desde a Idade Média em algumas regiões da Alemanha do Sul. Já no Brasil, surgiria, em meados do século XVII, um certo Gaspar Werneck, cujo filho – ou neto – de nome João Werneck (ou mesmo Berneque ou Verneque) apareceria anos depois no recôncavo do Rio de Janeiro. Casado com D. Isabel de Souza, João teve quatro filhos e duas filhas, indo o casal morar no Pilar (atual Duque de Caxias). Contudo, em 1711, em consequência da invasão do Rio de Janeiro pelas tropas francesas comandadas por Duguay-Trouin, a família fugiu para o alto da Serra do Couto através do Caminho Novo de Minas. As duas filhas prosseguiram viagem para Vila Rica, sendo que em Minas Gerais Antônia casou-se com o sesmeiro português Manoel de Azevedo Mattos, com o qual veio construir, em 1770, a primeira moradia da Fazenda de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz (atual Fazenda Santa Cecília), o embrião de Miguel Pereira. Dali, a família Werneck espalhou-se então por toda a área do Vale do Paraíba e mesmo para outras regiões do Brasil, constituindo uma das maiores famílias de nosso país. Como curiosidade, devemos lembrar que, na época, os filhos recebiam o sobrenome da mãe e não do pai, razão pela qual Inácio de Souza Werneck, o sargento-mor do Império e uma das figuras mais respeitadas na Serra do Tingá, chamava-se Inácio de Souza Werneck em função do nome da mãe, Antônia Ribeiro ou da Ribeira (do Pilar) Werneck.
Inácio nasceu em 25 de julho de 1742, na Freguesia da Borda do Campo, Vila de Barbacena, Bispado de Mariana (MG), sendo ali batizado em 12 de agosto do mesmo ano. Bem cedo, demonstrou profunda vocação para a vida religiosa. Disposto a ingressar no Curso de História Sagrada e Eclesiástica do Seminário São José, no Morro do Castelo, aos 25 anos seguiu para o Rio de Janeiro na firme intenção de se tornar padre, hospedando-se na casa do ajudante-de-ordens Francisco das Chagas Monteiro, que mantinha com o pai de Inácio (o citado Manoel de Azevedo Mattos) diversos negócios comerciais e uma amizade de muitos anos. Mesmo ciente de seu forte desejo de cursar o seminário, o rapaz não teve como resistir aos encantos de Francisca Laureana das Chagas Monteiro, a filha de seu anfitrião, nascida no Rio de Janeiro e batizada na Igreja da Candelária em 24 de abril de 1746. Assim, Inácio abriu mão de sua carreira religiosa para com ela se casar no dia 26 de setembro de 1769 na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, na antiga Rua da Vala (hoje Rua Uruguaiana), tendo como testemunhas o padre Manoel Pinto da Cunha e Pedro Nolasco de Mendonça. Inácio tinha, então, 27 anos e Francisca apenas 23. O casal veio fixar-se na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Serra Acima da Roça do Paty do Alferes, sendo ele já reconhecido como um rico e respeitado senhor de terras e herdeiro legítimo das propriedades até ali amealhadas pelo pai e daquelas que Azevedo Mattos iria adquirir na área de Vera Cruz a partir de 1770. Assim, no ano seguinte ao casamento de Inácio, Manoel de Azevedo Mattos (já viúvo, pois sua esposa Antônia morrera em 1765), os filhos Ana Ribeiro de Jesus, Manuel de Azevedo Ramos e Inácio de Souza Werneck, ao lado da esposa Francisca – já grávida do primeiro filho –, iniciavam a construção da “primeira moradia da Piedade” que seria bastante ampliada nos anos seguintes em função do aumento da família. Portanto, a partir de 1788 Inácio, praticamente sozinho, assumiu a administração das vastas terras da Piedade, cujas paredes viram crescer seus doze filhos (8 mulheres e 4 homens).
Além de abastado fazendeiro e pai de numerosa prole, Inácio ostentou, sucessivamente, as patentes de Alferes, Tenente e Capitão de um Corpo de Milícias da Corte, terminando sua vida militar com a reforma no alto posto de sargento-mor de ordenanças, em 20 de outubro de 1809.
Com efeito, Inácio fora indicado, em 1788, pelo Vice-Rei para tal cargo que abrangia o chamado Termo de Nossa Senhora da Conceição de Serra Acima da Roça do Alferes (hoje Paty do Alferes), até porque ele conhecia muito bem toda a região da serra, naquela época um vasto sertão de florestas virgens habitadas por muitos índios Puris e por um grande contingente de animais selvagens. Com o posto oficializado, logo foi incumbido de defender o distrito de Sacra Família do Tinguá dos esporádicos ataques de alguns indígenas insatisfeitos com a presença do homem branco no local. Posteriormente, o governo decidiu aldear os índios Coroados na região de Valença, na divisa com o Rio Preto, e para tanto determinou que Inácio fizesse a abertura de caminhos que pudessem levar tropas por aquele ainda desconhecido sertão. Na região, Inácio apoiou o fazendeiro José Rodrigues da Cruz e o Padre Manoel Gomes Leal tanto na catequização dos Coroados quanto na organização da futura Freguesia de Nossa Senhora da Glória de Valença. Por essa época, abriu o caminho conectando a incipiente Aldeia de Valença até a aldeia dos índios Araris, hoje Conservatória, estabelecendo assim ampla ligação com a Estrada Geral para as Minas e também com os caminhos auxiliares do Pilar do Tinguá. Registre-se, ainda, que algumas terras da Freguesia de Santa Tereza, hoje Rio das Flores, foram colonizadas por Inácio, o que nos dá bem a dimensão da sua importância para grande parte do Sul Fluminense.
Inácio, entretanto, decepcionou-se muito com tal tipo de trabalho. Ele temia que o recrutamento forçado dos indígenas para a Armada da Corte e seu aldeamento em áreas menores da região pudessem levá-los a uma revolta incontrolável. Não concordando com os métodos abusivos da Corte, Inácio rogou às autoridades, em 1808, a demissão de seus cargos, mas Sua Majestade D. João VI – que acabara de chegar ao Brasil fugindo das tropas de Napoleão – não só indeferiu seu pedido como lhe exigiu o cumprimento das promessas feitas anteriormente ao Vice-Rei. Ainda mais entristecido pelo não reconhecimento de seus leais serviços, de pronto solicitou sua reforma no posto de sargento-mor, alegando, em especial, sua idade avançada. Tal reivindicação, porém, só lhe foi deferida pela Corte no dia 20 de outubro de 1809, quando já contava 67 anos.
Uma vez reformado, Inácio retornou para sua querida Piedade de Vera Cruz, onde o esperavam a amada Francisca, seus filhos e netos. Apesar de se afastar dos exaustivos trabalhos impostos pela Corte e a despeito de sua idade, o poder de seus títulos continuava concentrado em suas mãos, e o prestígio do seu nome impunha respeito e temor em muitas regiões da Província Fluminense, o que, de certa forma, obrigava-o a desempenhar interinamente os encargos para os quais o poder central do Reino não indicava substitutos, na vã tentativa, talvez, de demovê-lo da reforma militar.
Todavia, um acontecimento infausto acelerou a solução desses problemas com o Reino. Em 11 de outubro de 1811, morria na Piedade sua fidelíssima companheira Francisca Laureana, depois de 42 anos de vida conjugal. Idoso, exaurido pela vida militar à qual dedicara a maior parte de sua existência, triste, sem disposição para outras viagens e não desejando realizar serviços em favor de um poder com cujas ordens autoritárias e por vezes inconsequentes já não concordava, Inácio decidiu abraçar a vida eclesiástica que abandonara em troca do casamento com Francisca. Apoiado em sua decisão por toda a família, escreveu uma longa carta ao Reino na qual expunha seus motivos e rogava licença para receber as Ordens.
Dois anos depois, ou mais exatamente em 13 de dezembro de 1813, Inácio recebia do próprio Príncipe Regente D. Pedro I o Despacho Real contendo não apenas a demissão de todos os seus cargos militares como ainda a autorização para que se ordenasse padre, conforme podemos atestar pela transcrição abaixo em sua ortografia original:
“Attendendo ao que me representou Inácio de Souza Werneck, Sargento-Mor Reformado das Ordenanças da Corte, sou servido demitti-lo do referido posto, afim de que possa ordenar-se, como deseja. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e lhe faça expedir em conseqüência os despachos necessários.
Paço do Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1813.
Príncipe Regente, Nosso Senhor.”[1]
Dois dias depois, o Conselho Supremo Militar, responsável pelas Patentes do Império, dava forma ao despacho para que o Bispo Capelão providenciasse a ordenação de Inácio.
Em finais de dezembro de 1813, já com 71 anos, Inácio finalmente viu-se contemplado pela Câmara Eclesiástica do Rio de Janeiro com as Ordens sonhadas desde a infância, numa rápida sucessão que logo o elevou à classe de padre, com 1ª Tonsura e Ordens Menores no dia 18, Sub-Diaconato no dia 19, Diaconato no dia 23 e Presbítero no dia 30, tornando-se assim o Padre Werneck de Vera Cruz, alcunha com que passou a ser conhecido por toda a área serrana.
O primeiro assentamento assinado pelo padre Werneck refere-se ao batizado de um membro de sua própria família, como consta do Livro de Batizados da Freguesia de Paty do Alferes, à página 78, referendado pelo Pároco patiense da época, Padre Joaquim José Pereira Furtado, que registra o que se segue (mantida a ortografia da época):
Aos quinze dias do mês de setembro do anno de mil e oitocentos e desessete nesta Freguezia de Nossa Senhora da Conceição foi-me apresentada uma Certidão do teor seguinte:
“Aos quatorze dias do mês de setembro de mil e oitocentos e desessete, neste Oratório de Nossa de Senhora da Piedade do Rio Sant´Anna de Vera Cruz batizei solenemente a Maria Innocente, filha legítima de João Pinheiro de Souza, natural e batizado nesta Freguezia; neta pelo lado paterno de José Pinheiro de Souza, natural e batizado na mesma Freguezia da Sé e de sua mulher Teresa Maria de Jesus, natural do Rio de Janeiro; neta materna do Padre Inácio de Souza Werneck, natural e batizado na Capela de Santo Antônio do Bertuga, filial da Freguezia da Piedade da Vila de Barbacena, Bispado de Mariana, e de sua mulher D. Francisca das Chagas, já fallecida, natural e batizada na Freguezia da Candelária do Rio de Janeiro; foram padrinhos o Capitão Francisco das Chagas Werneck e sua mulher D. Ana Joaquina de São José por procuração que apresentou D. Cândida Maria Werneck.
E nada mais continha a dita Certidão.
Do que para constar fiz este que assinei.”[2]
Essa certidão é extremamente importante, pois confirma o local de nascimento de Inácio e também que o primeiro batizado por ele consagrado já na condição de Padre Werneck de Vera Cruz foi o de uma bisneta sua, filha de José Pinheiro de Souza Filho, este, por seu turno, filho de Maria do Carmo Werneck, a primogênita de Inácio, com o Tenente José Pinheiro de Souza.
Inácio faleceu no dia 2 de julho de 1822, aos 80 anos de idade. Atendendo a um último pedido seu, o corpo foi sepultado em Paty do Alferes. Torna-se fundamental assinalar, no entanto, que a inumação de Inácio ocorreu na antiga capela de Arcozelo (em terras da centenária Fazenda da Freguesia) e não atual Matriz de Nossa Senhora da Conceição, já que esta se encontrava apenas esboçada em 1822.
A Fazenda da Piedade, no auge de sua produção, chegou a concentrar em suas terras mais de 240.000 pés de café e cerca de 250 escravos, além de um notável plantel de animais de corte e de carga. Deu à família Werneck condições de consolidar uma das maiores fortunas da Serra do Tingá, especialmente quando administrada por Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão de Paty (neto de Inácio), que dela se tornou proprietário após o falecimento de seus pais. Com a morte do barão em 1861, a fazenda passou às mãos da baronesa Maria Isabel Assunção Ribeiro de Avelar, da tradicional família Ribeiro de Avelar, proprietária da Fazenda Pau Grande. Com a derrocada da cultura cafeeira determinada pela Abolição da Escravatura, a Piedade foi comprada pelo visconde de Arcozelo (Dr. Joaquim Teixeira de Castro), genro do barão de Paty, passando depois sucessivamente pelas mãos de vários proprietários e entrando num irreversível processo de decadência, apesar dos esforços de alguns de seus donos em mantê-la produtiva. Hoje, inteiramente restaurada pelo embaixador José Aparecido de Oliveira, a casa grande da admirável Fazenda da Piedade (rebatizada como Santa Cecília) mantém-se em Vera Cruz como um símbolo vivo da grandiosa história que permeou nossas montanhas e cujas atividades, ao longo de mais um século rico em homens e trabalho, permitiram a ocupação da Serra do Couto e fizeram vir à luz o atual Município de Miguel Pereira.
[1] Werneck, Dr. Francisco Klörs. Origem da Família Werneck in Revista Genealógica Brasileira, Ano IV, nº 8. São Paulo, 1943, pp. 315-324
[2] Werneck, Dr. Francisco Klörs. Op. Cit.