O ENGENHO DO PORTO DO RIO MERITI - Duque de Caxias / São João de Meriti - RJ
Por Hugo Delphim
Existe um bairro chamado Engenho do Porto em Duque de Caxias que, apesar do nome, fica bem distante do mar. O nome tem origem no engenho de cana de açúcar onde se localizava o principal porto da antiga Freguesia de São João Baptista do Merity, originalmente chamada de São João Baptista de Trairaponga. Era o Engenho do Porto, localizado no antigo leito do Rio Meriti, hoje retificado. Esse é mais um dos locais que tiveram sua história esquecida, mesmo sendo um dos mais importantes engenhos de cana de açúcar de sua época. Essa rica história será detalhada no artigo a seguir.
A ORIGEM:
Na segunda metade do século XVII as terras que deram origem ao Engenho do Porto pertenciam ao Capitão Antonio de Abreu de Lima, que criou ali um engenho de cana de açúcar. Esse engenho foi a praça, isto é, a leilão, devido a uma dívida contraída com Agostinho de Paredes. O engenho foi arrematado pelo Capitão Francisco Mendes Simões, que logo o vendeu a Agostinho de Paredes, conforme seguinte trecho de escritura de 1686:
"Escritura de venda de terras que faz o Capitão Francisco Mendes Simões a Agostinho de Paredes – com forno de olaria, casa de vivenda e um engenho armado, com 800 braças em quadra, sitas no porto de São João, onde chamam o rio de Meriti, que é na ponta da freguesia, arrematadas em praça pública, em execução que o dito Agostinho de Paredes fez ao Capitão Antonio de Abreu de Lima." ( 4º Ofício de Notas, disponível na Biblioteca Nacional)
Conforme trecho, eram 800 braças de terras, no Porto de São João, no Rio Meriti, onde havia um engenho armado, uma casa de vivenda e um forno de olaria. A citada casa e o forno, ainda rudimentar, existiram até o início do século XX e podem ser observados na rara imagem em anexo.
A INQUISIÇÃO CONFISCA O ENGENHO DO PORTO:
O novo proprietário, Dr. Agostinho de Paredes, foi um conceituado advogado e também senhor de diversos engenhos. Em Sapopemba teve dois engenhos, chamados Engenho de N. S. do Socorro (depois chamado Engenho da Cruz) e Engenho de N. S. do Desterro. No Campinho também teve dois engenhos, chamados Engenho de N. S. da Conceição e Engenho da Pureza de N. S. e São Benedito. Também foi proprietário de várias casas no Rio de Janeiro e da Ilha de Saravatá, localizada na foz do Rio Meriti, na Freguesia de Irajá. Se tratava de um cristão novo, também chamado criptojudeu, isto é, um judeu sefardita que em público praticava a fé católica, mas o judaísmo em oculto. Foi preso pela inquisição, tendo todos seus bens confiscados e foi condenado pelo Tribunal do Santo Ofício.
Em 1692, antes da perseguição, o Engenho do Porto chega as mãos de João Correia Ximenes, genro de Agostinho de Paredes, que o recebeu como dote de casamento. Segue trecho da rara escritura do dote:
"Escritura de dote de casamento que fazem Agostinho de Paredes e sua mulher Dona Ana de Azeredo a seu genro João Correia Ximenes, por casar com sua filha Dona Brites de Paredes – duas datas de terras, que estão místicas, sitas em São João, na forma em que hoje as possui (...) data do rio de Meriti (...) as quais duas datas de terras houveram eles dotadores por título de arrematação em praça pública na execução que fez por dívida que lhe devia o Capitão Antonio de Abreu de Lima..." (1º Of. Notas, disponível no Arquivo Nacional)
João Correia Ximenes foi um importante tabelião de sua época, também tendo sido condenado pela inquisição, assim como muitos membros das famílias Paredes e Ximenes. Também perdeu todos os seus bens, entre eles casas no Rio de Janeiro, uma Chácara na Carioca e outra no Catete, que depois foi chamada Chácara do Machado, por ter sido arrematada pelo Alferes André Nogueira Machado. É o atual Largo do Machado.
Também foi citado por Baltazar da Silva Lisboa, em Anaes do Rio de Janeiro, de 1834, que diz "...João Corrêa Chimenes pelo seu Engenho de Merity com boa fabrica, avaliado em 8:800$000 rs..."
INÍCIO DO SÉCULO XVIII:
Após ser confiscado e ir a praça pública, ou seja, a leilão, o Engenho do Porto foi arrematado por José de Andrade Souto Maior, um dos maiores senhores de engenho de sua época. Sobre este fato, testifica Monsenhor Pizarro, mencionando a capela que havia no engenho:
"...de Nossa Senhora da Conceiçam do Engenho do Porto, distante menos de 1/4 de legoa ao S. Não consta com certeza, ser o seu fundador João Corrêa Ximenes, senhor que foi da Fazenda, que, por compreendido em culpas no Tribunal do Santo Ofício, se lhe rematou pelo Juízo do Fisco; ou se por José de Andrade Sotto Maior, rematante da mesma..." (Livro das Visitas Pastorais realizadas em 1794)
Além do Engenho do Porto, José de Andrade Souto Maior também foi dono dos engenhos de N. S. do Desterro (na Pavuna), de São Roque (também em Meriti), N. S. da Cabeça (em Magé), Santo Antonio (na Pedra, em Inhaúma), N. S. da Piedade (também chamado Engenho Novo, em Inhomucu), Bom Jesus (em Piraquara), São Diogo (também chamado Engenho d'Água, na encosta do Maciço do Gericinó) e o seu principal, o Engenho do Gericinó. Também possuía muitas terras em diversas regiões, como na Pedra do Pé de N. S. da Penha, em Guandumirim, no Retiro e etc. Foi vereador do Rio de Janeiro, arrematador dos dízimos e um dos heróis na defesa da cidade em uma das invasões francesas. Era poderosíssimo.
Não foi possível descobrir ao certo o destino do Engenho do Porto após o período de José de Andrade Souto Maior, mas foi possível encontrar uma escritura de 1731, onde Dona Helena Souto Maior, sua sobrinha, aparece vendendo parte das terras ao Capitão Antonio Fernandes Lima. Eram terras localizadas no Rio de São João de Meriti, no "porto das caixas", conforme trecho a seguir:
"Escritura de venda de terras que fazem o Capitão-mor Manoel Pereira Ramos e sua mulher Dona Helena Souto Maior ao Capitão Antonio Fernandes Lima – com 64 braças em quadra, sitas no rio de São João de Meriti, no porto das Caixas, partindo de um lado com terras do comprador..." (2º Of. Notas, no Arq. Nacional)
O mencionado Capitão Mór Manoel Pereira Ramos é o famoso dono do Engenho do Marapicu. Já o Capitão Antonio Fernandes Lima, também foi citado por Monsenhor Pizarro como o administrador da capela de N. S. da Conceição do Porto, sediada no Engenho do Porto, que serviu interinamente como sede da Freguesia de São João de Meriti, conforme trecho a seguir:
"...e sendo passados anos, no de 1708 se arruinou a Capela Mór de sorte, que foi preciso conduzirem-se as santas imagens para a Capela de Nossa Senhora da Conceiçam do Porto de que era administrador, Antonio Fernandes Lima..." (Livro das Visitas Pastorais realizadas em 1794)
FINAL DO SÉCULO XVIII:
Passadas algumas décadas o Engenho do Porto chega as mãos do Tenente Manoel Martins dos Santos Vianna. Sobre ele, se referiu o Mestre de Campo Fernando Dias Paes Leme em seu relatório enviado ao Marquês do Lavradio:
"O Eng. do Porto do Tenente Manoel Miz dos Santos Vianna, q faz todoz os annos quinze caixas de assucar, entre branco, e mazcavado, e seiz pipaz de agoardente, pouco maiz, ou menoz com sincoenta escravoz..." (Relatório enviado ao Marquês do Lavradio em 1778)
Vale observar que "Miz" é abreviação de Martins. O relatório também cita o porto que existia no engenho, dizendo que "O Porto do Eng. do Tenente Manoel Miz, tem hu barco da fazenda...". Manoel Miz também possuía mais dois barcos no porto geral de Meriti, também localizado em suas terras.
Já como capitão, Manoel Martins dos Santos Vianna também foi citado por Monsenhor Pizarro, quando falava sobre a antiga capela de São João Baptista, mencionando o dono das terras onde se localizava a Matriz da Freguesia de Meriti:
"Acha-se situado uma igreja em um lugar elevado, e na falda de um alto morro (...) o terreno em que se vê fundada, hé pertencente ao Engenho do Cap. Manoel Martins dos Santos Viana (...) Casa de residência própria para os Párocos, não há se o atual, R. Pároco quiz tê-la própria, fez à sua custa em terras, que lhe concedeu o Senhor, que delas é, Manoel Martins dos Santos Viana, com larguesa para as suas lavouras..." (Livro das Visitas Pastorais realizadas em 1794)
Essa igreja é a atual paróquia de S. Teresinha do Menino Jesus (ver imagem em anexo), localizada no bairro Parque Lafaiete, território que também fazia parte das terras do vasto Engenho do Porto.
O visitador também citou a Fábrica de Açucar "Do Cap. Manoel Martins dos Santos Viana, distante 1/4 de legoa, no Porto do S." (Livro das Visitas Pastorais realizadas em 1794)
SÉCULO XIX:
No início do século XIX, o Engenho do Porto chega as mãos de Candido Martins dos Santos Vianna, certamente herdeiro ou familiar de Manoel. Por este motivo, o famoso porto localizado no Rio Meriti também foi chamado, nesta época, de Porto do Candido. Tal personagem é relacionado no Almanak Laemmert como fazendeiro e dono de uma olaria na Freguesia de São João de Meriti.
Sobre este período, um relatório de 1863 cita tanto o engenho, quanto seu porto:
"...nesta parte tem o rio unicamente de 250 a 160 palmos de largura, e assim chega até ao Engenho do Porto ou Porto do Candido, fazenda de Candido Martins dos Santos Vianna, primeira fazenda que se encontra à margem do rio (...) Ainda em frente do engenho existe a meio rio uma grande pedra, correspondendo a outra na margem boreal, que occupa um espaço de 65 a 70 palmos de diâmetro (...) É outra grande pedra na margem septentrional que entra pelo rio a tomar-lhe seguramente a terça parte de sua largura..." (Relatório do Capitão Manoel A. V. de Oliveira)
Veja que a grande pedra servia como referência tanto do Engenho, quanto do seu porto. Sobre a localização atual, onde existiu a pedra, falaremos mais adiante.
Posteriormente, o Engenho do Porto se torna propriedade de D. Maria dos Anjos Sanches de Paiva, viúva de Jacintho Ferreira de Paiva, que foi secretário do Banco do Brasil e fazendeiro em Valença. Se trata de uma grande fazendeira, dona da Fazenda da Forquilha, no atual município de Rio das Flores, onde possuía mais de 300 mil pés de café. O casal também possuía vários imóveis no Rio de Janeiro, onde se concetrava o cotidiano familiar. Ela também foi listada no Almanak Laemmert como dona do Engenho do Porto, na Freguesia de São João de Meriti.
Nas décadas seguintes o Engenho do Porto se torna propriedade de Antonio Telles de Bittencourt, membro de tradicional família de região.
Sobre esse período, segue registro de 1883, logo após a seu falecimento:
"O Dr. João Antonio de Barros Junior, juiz de orphãos nesta villa de Iguassú, e seu termo etc. Faço saber aos que o presente edital virem ou delle notícia tiverem, que o porteiro dos auditorios metterá a público pregão de venda e arrematação no dia 12 de novembro proximo futuro, às 11 horas da manhã, na fazenda do Engenho do Porto, à Freguezia de Merity, os bens declarados pertencentes aos orphãos João e Antonio filhos do finado Antonio Telles de Bittencourt, cujos bens lhe tocaram em partilha e são os seguintes..." (Jornal do Commercio)
A fazenda não foi leiloada, apenas os bens semoventes, os utensílios e alguns escravos. Genaro Lomba foi o invetariante. O citado filho João Telles de Bittencourt se tornou prefeito de Nova Iguaçu na década de vinte e dono de grande olaria no local. Já o filho homônimo, posteriormente conhecido como Coronel Antonio Telles de Bittencourt, se tornou um importante fazendeiro e negociante, tendo sido premiado pela Secretaria do Estado, como o maior pomicultor fluminense, também sendo dono da Fazenda Santa Martha, onde possuía cerca de 30 mil árvores frutíferas. Esse Antonio, o filho, faleceu em um desastre de trem na Estação de Actura. O escritor Coelho Netto, que era seu concunhado, ofereceu sua casa para velar o corpo, na Rua do Roso n. 21. O corpo foi transportado em trem especial até a capital.
ATUAL LOCALIZAÇÃO DO ANTIGO ENGENHO E SEU PORTO:
Como consta em uma das citações anteriores, havia uma grande pedra em frente ao Engenho do Porto, localizada na margem boreal e setentrional do Rio Meriti, isto é, na margem correspondente ao lado norte. Essa pedra existiu até a construção da Linha Vermelha. Através de pesquisa oral com os moradores mais antigos da região, foi possível obter relatos de que o local era muito frequentado para banho, onde segundo os mesmos, havia uma "grande pedra de rio" que as crianças utilizavam para saltar no Rio Meriti. Quando não havia frequentadores, a pedra se tornava poleiro de urubus. Essa pedra que não existe mais, ficava localizada em frente ao atual corpo de bombeiros (ver foto em anexo). Conforme trecho citado e confirmação através de sobreposição de mapas antigos, se trata da localização exata do antigo "Porto do Rio Meriti", um dos diversos portos que existiram mesmo rio. Nesse trecho havia um dos antigos meandros do Rio Meriti, hoje retificado. Os navegantes o chamavam de Volta Redonda, devido a ser uma grande curva que havia no rio.
A antiga Casa de Vivenda do Engenho do Porto ficava no alto do outeiro localizado em frente ao porto. Nas primeiras décadas do século XX existiu uma grande olaria no local, pertencente ao já citado João Telles de Bittencourt. Nessa época os arredores já começavam a ser loteados. Essa olaria era de grande porte, maior que as dos séculos anteriores. Certamente a esta altura, o casarão da fazenda do Engenho do Porto já havia sido demolido para a construção da mesma. Caso contrário, nas décadas seguintes, com a construção da fábrica Sintecur, com vários edifícios localizados no alto da colina, não restou pedra sobre pedra. Era uma grande indústria de produtos químicos e em seus documentos, consta que estava localizada em "terrenos de marinha". Posteriormente funcionou no local a Siambo, que fabricava materiais de cortiça, como rolhas. Após o fechamento da fábrica e algumas décadas de abandono do imóvel, hoje funciona um Paint Ball no local.
Através de várias visitas em pesquisa de campo ao local, foi possível encontrar alguns tijolos, cacos de telha e etc. Contudo, como o alto da colina foi muito alterado e todo espaço tomado com a construção da fábrica, dificilmente se tratam de vestígios anteriores a mesma.
MAIS RELATOS DE MORADORES:
Um dos moradores antigos entrevistados, diz que seu pai contava que na área localizada nos fundos da colina existiu um "cemitério de escravos". Conta também que brincava nessa área quando criança e que por algumas vezes encontrou ossadas humanas aparecendo no solo. Essa área fica entre a colina do antigo Engenho do Porto e um morro de grandes proporções, localizado nos fundos, onde segundo alguns moradores, havia uma mina d'água que formava um pequeno córrego que ia até o Rio Meriti. Como este morro foi explorado como pedreira há algumas décadas, a mina d'água secou há muitos anos. Infelizmente não foi possível chegar nesse trecho, que é pantanoso e totalmente coberto de vegetação.
OBRAS DE SANEAMENTO:
Assim como grande parte da Baixada, a região sofria muito com inundações em épocas de chuva, inclusive a grande enchente que extinguiu a vizinha Favela do Mangue, criada nas décadas seguintes. Desta forma o Rio Meriti foi sofrendo diversas alterações em obras de saneamento, até ser totalmente retificado. Essas obras foram vitais para o saneamento da região. Mas por conta delas, não é possível encontrar vestígios do antigo porto, devido aos inúmeros aterros realizados.
Da valiosa história só restou o nome dos bairros Engenho do Porto e Prainha, que mesmo distantes do mar, sugerem que ali existiu vida marítima.
Nas imagens a seguir e suas legendas consta mais um pouco dessa história.
*Pesquisa e texto autoral de Hugo Delphim, publicados na Página O belo e histórico Rio de Janeiro.
*Fontes de pesquisa se encontram citadas no texto.